Uma borboleta contra a vidraça
Lá estava eu, mais uma vez caminhando em passos lentos para um leito de hospital. Enfrentava a minha segunda gravidez de risco, por isso, o temor era grande. Mas, não era tudo! Eu estava no Japão!
Do outro lado do mundo, o idioma era confuso, o tratamento estranho, a comida singular. Apesar disso, as médicas e enfermeiras tentavam fazer tudo parecer agradável para mim. Sorriam muito e até arriscavam dizer o meu nome. No entanto, a sensação de percorrer aqueles corredores era ainda mais assustadora do que na primeira vez no Brasil.
O quarto ficava no final do corredor 2A, no segundo andar do prédio. Cortinas cor-de-rosa dividiam os aposentos dos pacientes, em seis cubículos. O meu canto era privilegiado pela enorme janela veneziana e pela proximidade do lavabo. Uma cama com lençóis brancos, um estreito armário cor-de-rosa para combinar com as cortinas, uma televisão 14 polegadas, uma cadeira para receber visitas e um assento sanitário portátil para os momentos de aperto; era tudo o que tinha direito.
A cama possuía aquele aparato móvel chamado de manivela. Eu deveria girar devagar para não me esforçar, informou a enfermeira; apertar a campainha pendurada na cabeceira da cama somente quando necessitasse de ajuda, verificar meu peso todas as manhãs antes da alimentação matinal na balança que ficava no corredor, não tomar banho sem autorização da médica e bla bla blá.
O armário tinha espaço suficiente para três toalhas, um pijama, um chinelo, um sabonete, um tubo de creme dental, uma escova de dente, um pente de cabelo, um frasco de shampoo e um condicionador, hum!…ficou apertado. A mochila ficou melhor em cima do armário e nela as roupas íntimas, assim na gaveta eu pude deixar o garfo, a colher, o pacote de bolachas, a pequena bíblia e os dois livros que eu pretendia ler.
Infelizmente para mim, felizmente para ele, meu esposo não poderia usufruir da estada nesse hotel sem estrelas. A visitação tem horário marcado, por isso, passaria muito tempo sozinha, tempo suficiente para ler quantos livros pudesse e assistir quantos programas de TV eu suportasse (lembrem-se televisão japonesa). O aparelho de TV, modelo Panasonic, apesar da aparência desgastada mostrava um sinal de modernidade: funcionava apenas com um cartão eletrônico que custava cerca de U$7 (sete dólares) por cada 10 horas de uso. Fiquei surpresa – vou ter que pagar para ver TV?! A resposta veio com um sonoro sim, seguido de uma boa explicação: – Não é permitido ligar a televisão sem fone de ouvido e o hospital não fornece um.
Bem, pensemos nisso depois. Terminada a vistoria no quarto, chegou a hora de colocar aquela camisola sem assinatura de grife e sem exclusividade. Todos os pacientes desfilam nas passarelas do hospital com o mesmo modelo unissex. Corte reto, tecido de algodão com listras verticais azuis e tiras transversais para amarrar na frente. Pronto! É nessa hora que a gente se sente mesmo doente e percebe que se tornou um prisioneiro de “alma branca” e que as agulhas de soro são as algemas que te prendem.
A comida, embora enfeitada, tem para mim sabor de amargura e desce pela garganta num doce lamento palatino. Logo no café da manhã, a primeira decepção. Nada de pão fresquinho, torradinho com manteiga, uma fatia de cake, um pedaço de mamão, suco de laranja ou vitamina de cereal…. apenas gohan (tradicional arroz japonês) e misoshiro (típico caldo quente), salada e algum tipo de refogado. Coitado do meu bebê vai passar fome nesse lugar… arg, urg, acho que está dando enjoo… enfermeira me ajude!
As minhas tardes e noites naquele hospital seguiam sempre a mesma rotina: um cochilo e – “está na hora do soro”, outro cochilo e – “vamos medir a pressão”, mais um cochilo e “está na hora do remédio”. Serão estas drogas licenciadas que vão salvar-me? Abreviar os meus dias como hóspede forçado desse lugar? Oh, Deus Todo Poderoso só Tu podes me tirar daqui! Porque não me transformas numa borboleta para sair voando por esta janela afora?
Enquanto dizia essas palavras em meus pensamentos, virei-me para a janela e meus olhos estatelados contemplaram uma pequena borboleta colorida se debatendo contra a vidraça. Mas, não lhe dei muita atenção. Maior era o brilho do fim de tarde lá fora, o vento balançando a cortina, o som dos carros passando, as poucas nuvens no céu… Meu Deus, como eu desejo estar na rua, voltar à ativa, correr, pular…
De repente, um silêncio na alma me fez calar o coração. E a vidraça de paisagens tão belas se transformou num quadro triste e acinzentado. Comecei a imaginar o que haveria por detrás daquelas outras janelas, dentro daqueles outros quartos que ficavam além do pátio. Homens, mulheres, jovens, velhos, crianças, recém-nascidos, uma população doente, moribunda, condenada, presa a uma similar cama de hospital.
Alguns condenados à morte, outros entregues à própria sorte. Muitos dependentes de remédios e outros tantos dependendo de alguém. Uma boa parte deles gritando, gemendo, enquanto a maioria agoniza, sem forças, calada, amordaçada pela dor. Muitos sem condições de olhar para janela ou sequer pensar nela. Acidentados, queimados, aleijados, operados, e… poderia acrescentar um grande rol de tipos de pacientes.
Meu Deus! Não tenho agradecido corretamente! Ainda que eu fosse como esta borboleta amarela, melhor seria permanecer ali como ela, parada, grudada na vidraça. Melhor ficar calma, guardar forças para quando a janela se abrir. Caso contrário, eu poderia perder uma asa e nunca mais voar.
Enquanto a janela não se abre, a borboleta pode parar para pensar na vida, fazer planos, sonhar… Sonhar os sonhos de Deus. E interceder. Orar pedindo a Deus que ajude aquelas outras borboletas, que estão presas nas vidraças dos outros quartos do hospital, desse imenso hotel de infelizes.